domingo, janeiro 29, 2006

De herdeiro de Zico a rei de León





Em 28 de setembro de 1977, uma quarta-feira, Flamengo e Vasco adentraram o gramado do Maracanã para decidir o segundo turno do Campeonato Carioca [na época, este turno ainda não recebia o nome de Taça Rio]. Era um jogo de vida e morte, muito mais para o Mengo, pois o Vasco havia conquistado o primeiro turno e, caso ganhasse também o segundo, levaria o título estadual por antecipação.

Exatas 152.059 pessoas assistiram o jogo, um público inimaginável para os dias de hoje. A partida foi nervosa, truncada e as defesas (especialmente a do Vasco, uma verdadeira muralha formada pelo goleiro Mazarópi mais Orlando Lelé, Abel, Geraldo e Marco Antônio, e que não havia tomado um gol sequer naquele segundo turno) anularam os ataques. Após um 0 x 0 no tempo normal e na prorrogação, a decisão foi para os pênaltis.

Todos os jogadores converteram suas cobranças. Na última cobrança do Flamengo, e que fecharia a série, um garoto de 19 anos, maior destaque dos juniores da Gávea e mal ingressando na equipe profissional, encarregou-se da espinhosa missão. Mas foi infeliz: Mazarópi defendeu a cobrança e o Vasco conquistou o título.

Estivesse em outra equipe, o jovem quem sabe teria sido crucificado pela derrota, dispensado e desaparecido do cenário futebolístico. Mas o Flamengo, no início da primeira gestão Márcio Braga, estava afundado em dívidas [viram? não é uma novidade...] e começava a priorizar a prata-da-casa, aliando jovens promessas a algumas poucas contratações de impacto, como Cláudio Adão e Carpegiani.

Mas havia bons motivos para apostar naquele garoto em especial. Tita era considerado o principal craque da equipe de base e muitos apostavam que estaria ali o "futuro Zico" da Gávea, mesmo porque era sua a camisa 10 dos juniores.

Tita, ou Milton Queiróz da Paixão, nascido no Rio de Janeiro em 01/04/1958, era um meia hábil e muito técnico. E fazia seus gols, ainda que não na mesma quantidade do Galinho. Após um período de entradas e saídas na equipe principal, assumiu definitivamente uma vaga de titular no início de 1979, sendo escalado como um falso ponta-direita, vestindo a camisa 7.

Logo chamou a atenção por ser genioso: dizia a quem quisesse ouvir que sonhava era com a camisa 10, ocupada justamente pelo ídolo maior da torcida e maior jogador do País na época. Político, Zico afirmava que quem sabe um dia ele mesmo mudaria de ares e o garoto ganharia a tão sonhada camisa. Outra curiosidade que chamou logo a atenção de todos era o fato de Tita ser mórmon: não fumava, não bebia, e orgulhava-se de ainda ser virgem. Salvo alguma "escorregada", ele só daria seu "pontapé inicial" nesse campo em 1981, ao casar-se com Sandra, freqüentadora da mesma igreja.

Destacando-se numa equipe já poderosa, cheia de craques, e tendo como técnico Cláudio Coutinho, que acumulava o mesmo cargo na Seleção Brasileira, não demorou a ter sua primeira chance com a "amarelinha". Depois de atuar numa partida não-oficial contra a Seleção Baiana, fez sua estréia de fato justamente contra a Argentina, em pleno Maracanã, em 02 de agosto de 1979. O jogo era válido pela Copa América [que na época não tinha uma sede fixa, sendo disputada em jogos de ida e volta entre os países participantes], e Tita saiu-se muito bem, marcando um dos gols da vitória de 2 x 1.

Teve sua tão sonhada chance de vestir a 10 rubro-negra ao substituir o então contundido Zico no terceiro turno do Estadual que deu ao clube o tricampeonato naquele mesmo ano. Saiu-se muito bem, mas era impossível competir com o Galinho na época, e este recuperou a camisa ao retornar.

Os anos seguintes foram gloriosos: campeão brasileiro em 1980, uma "tríplice coroa" em 1981 (carioca, da Libertadores e Mundial) e um novo título nacional em 1982. Mas a concorrência com Zico era clara para todos. Tita queria para si o posto de camisa 10 e maior ídolo da torcida, e nas raras oportunidades que a teve dava tudo de si, como numa partida contra o Bangu em que fez todos os gols na vitória de 3 x 0.

De sucesso indiscutível no clube, apesar destas pequenas picuinhas, não conseguiu ter uma maior seqüência na Seleção: foi convocado por Telê Santana para vários amistosos em 1980 e disputou o Mundialito do Uruguai e as Eliminatórias em 1981, mas acabou fora do Mundial de 1982 devido à grande concorrência no ataque.

No início de 1983, o clima andava tenso na outrora feliz e ensolarada Gávea. O Fla havia acabado de perder o bi da Libertadores e sido derrotado pelo até então "freguês" Vasco (que vinha de cinco vice-campeonatos consecutivos) na decisão do Estadual. Carpegiani, agora técnico, começava a ter atritos com alguns dos principais jogadores da equipe, especialmente Nunes e Tita. Ambos foram emprestados: o primeiro para o Botafogo, e o último para o Grêmio.

Tita desembarcou no Olímpico cercado de desconfiança devido a suas origens "cariocas". Mas sua contratação foi um especial pedido do jovem técnico Valdir Espinosa [ainda sem o "y" no nome...]. O Tricolor disputaria a Libertadores e precisava de jogadores de qualidade e experiência na competição.

A desconfiança acabou rápido. Tita assumiu a 10, rapidamente se adaptou à equipe, impôs seu futebol e virou ídolo da torcida. Foi um dos principais nomes da então inédita conquista gremista. Para melhorar, eliminou na primeira fase da competição sul-americana justamente o Flamengo do desafeto Carpegiani, que acabou demitido e vendo Carlos Alberto Torres levar o rubro-negro ao terceiro título nacional.

Mas o casamento gaúcho acabou rápido. Após a venda de Zico para a Udinese da Itália, o Flamengo exigiu o rápido retorno de Tita. O Grêmio tentou segurá-lo de todas as formas, alegando a disputa do Mundial Interclubes contra o Hamburgo alemão no final da mesma temporada, mas o rubro-negro foi irredutível. E Tita também estava empolgado em finalmente jogar como ponta-de-lança, sua real posição, e com a sonhada camisa 10.

Mas as coisas não funcionaram assim tão bem. O Flamengo vivia um momento de transição e começou a acumular tropeços: dois vices seguidos no Estadual (ambos diante do Fluminense do "Casal 20" Washington e Assis), e eliminações com goleadas no Brasileiro de 1984 (1 x 4 diante do Corinthians) e na Libertadores do mesmo ano (1 x 5 para o Grêmio). E em 1985, Zico voltou da Itália. Deixando clara a competição que havia entre os dois, Tita preferiu sair. Desta vez, definitivamente. Deixou a Gávea com a boa marca de 387 jogos e 131 gols.

Voltou ao Rio Grande, mas desta vez para o lado vermelho. Talvez não tenha sido o melhor a fazer: o Grêmio iniciava na mesma época um domínio no Estado que se estenderia até 1990. Tita alternou partidas excelentes com outras não tão inspiradas no Colorado, e acabou por retornar ao Rio de Janeiro no início de 1987. Foi contratado pelo Vasco.

Adaptou-se rapidamente a São Januário, fez os vascaínos esquecerem sua origem rubro-negra e voltou a sentir o gostinho de ser ídolo. Ainda mais por ter marcado o gol do título carioca do mesmo ano, justamente contra o Flamengo, um golaço que ficou mais famoso pela comemoração, em que ergueu a camisa sobre a cabeça, gesto tão banalizado no futebol de hoje em dia.

Contudo, este foi outro casamento rápido. O Bayer Leverkusen fez uma proposta e Tita, já aos 29 anos, não hesitou: rumou à Alemanha. E mais uma vez se deu bem: levou o então modesto time alemão, que também contava com o já veterano atacante sul-coreano Bum Kum Cha, ao título da Copa da UEFA, batendo na final o Espanyol de Barcelona.

Havia virado definitivamente um cigano. Mal completou uma temporada germânica, foi para a Itália defender o Pescara, juntando-se a seus antigos chapas rubro-negros Júnior e Edmar. Mas o time era fraco e acabou rebaixado. Ao final da temporada, Júnior retornou a seu amado Mengo, onde encerraria sua gloriosa carreira alguns anos depois, e Tita tomou novamente o caminho de São Januário.

Foi campeão brasileiro em 1989, mas seu futebol não luziu com a mesma intensidade da primeira passagem. Mesmo assim retornou à Seleção pelas mãos de Lazaroni, seu técnico na conquista carioca de 1987. Ficou apenas no banco na Copa do Mundo da Itália em 1990, sob os protestos principalmente da torcida e imprensa paulista, que preferiam ver em seu lugar Neto, então em sua melhor fase no Corinthians. Ao final do Mundial, despediu-se da Seleção, pela qual marcou seis gols em 34 partidas.

No mesmo ano, seu lado cigano voltou a falar mais alto e Tita foi se aventurar no futebol mexicano, onde foi defender o Léon. E lá finalmente se fixou: foram seis temporadas, sempre como principal destaque, artilheiro da equipe e ídolo da torcida local. "Desapareceu" para o torcedor brasileiro, mas ficou feliz mesmo assim.

Encerrou sua carreira em 1996. Retornou ao Rio de Janeiro e logo iniciou uma carreira de técnico, treinando Americano, Vasco (uma brevíssima passagem em 2000), Urawa Red Diamonds (Japão), El Paso Patriots (EUA), América-RJ, Bangu, Caxias, Remo e Campinense, seu último clube. Ainda espera uma chance de poder brilhar fora de campo da mesma forma que fez dentro dele.

Publicado originalmente no fórum Futebol News em julho de 2005

Foto: SambaFoot / PLACAR

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