domingo, janeiro 29, 2006

A glória e a decadência de um técnico





Nova Lima, interior mineiro, 1951. Neste ano, chegava à equipe local do Villa Nova um jovem treinador, de apenas 23 anos de idade e dois de carreira, mas muitas idéias em mente.

Martim Francisco Ribeiro de Andrada andava preocupado com a mesmice que imperava no futebol brasileiro. Praticamente todas as equipes se utilizavam do célebre "WM", criado pelo lendário Herbert Chapman no Arsenal londrino da década de 20 [o nome se deve ao desenho formado pela disposição dos jogadores em campo; traduzido numericamente, seria o esquema 2-3-5]. Contudo, Martim queria um esquema que pudesse dar mais liberdade de criação aos atletas.

Foi assim que nasceu o esquema "4-2-4", bem como o costume de usar os números para definir a tática de uma equipe. Martim foi criticado e até ridicularizado pela ousadia, sendo tachado de "inventor" e "visionário". Porém, com o novo esquema tático, o modesto Villa acabou por sagrar-se campeão mineiro naquele mesmo ano, batendo o poderoso Atlético; e no ano seguinte, utilizando a mesma tática, Martim conquistou o vice-campeonato com outra equipe pequena, a Siderúrgica de Sabará. E o "inventor" passou a ser chamado "cientista do futebol".

Não demorou para a novidade ser adotada e padronizada por todas as demais equipes do futebol brasileiro. Obviamente, o sucesso do novo esquema também fez com que clubes grandes voltassem sua atenção para o trabalho do jovem treinador. O primeiro deles foi o próprio Galo, sua primeira vítima, mas que acabou compensado com o bi em 1953/54. No ano seguinte, um novo resultado expressivo para Martim: um vice carioca com o América, em final polêmica onde o Flamengo conquistou o segundo de seus quatro tricampeonatos.

Em 1956, Martim Francisco desembarcou em São Januário para treinar um Vasco quase tão forte quanto o lendário Expresso da Vitória, formação que marcou época na década anterior. Substituindo Flávio Costa, técnico vice-campeão do mundo em 1950, passou a ter em suas mãos craques como Pinga, Vavá, Orlando, Bellini, Sabará e outros. Conquistou o título estadual no mesmo ano; após, comandou o esquadrão cruzmaltino na conquista de diversos torneios amistosos internacionais, entre eles o tradicional Teresa Herrera, em La Coruña.

Em uma conseqüência óbvia de tanto sucesso, foi cogitado para assumir a Seleção Brasileira que disputaria a Copa do Mundo na Suécia, em 1958. Mas seu temperamento forte e seu gênio complicado o afastaram do cargo, que acabou ficando com o bonachão Vicente Feola. Mesmo assim, não deixou de se fazer presente na inédita conquista, uma vez que a equipe utilizou justamente o esquema por ele criado sete anos antes; e a combinação deste com os novos gênios do futebol, como Pelé, Garrincha e Nílton Santos, encantou o mundo. Não demorou muito, o 4-2-4 ganhou a Europa e o resto do planeta; e assim seria até os anos 70, quando as maiores preocupações defensivas resultaram no advento do 4-3-3.

Também Martim viria a ser descoberto pelos Europeus. Entre idas ao Velho Mundo e retornos ao futebol brasileiro, passou por inúmeras equipes: Bangu, Corinthians [vice-campeão paulista em 1962], Cruzeiro [onde criou o famoso "tripé" de meio-campo, em 1967, viabilizando a escalação de Piazza, Zé Carlos e Dirceu Lopes juntos na equipe titular], Internacional, Vitória de Setúbal e Porto (ambos de Portugal), Betis, Elche e Athletic Bilbao (todos da Espanha), entre outras.

Mas o destino reservava agruras para o treinador. Envolvendo-se com más companhias, começou a beber. E as conseqüências foram trágicas: começou a chegar constantemente embriagado a treinos e concentrações, constrangendo dirigentes e jogadores. E aí começou sua ruína: com o tempo, os cartolas, em vez de o ajudarem, o abandonaram. Perdeu espaço nos grandes clubes.

Começou a rodar o Brasil: Goiânia, Rodoviário (AM), Vasco de Passos (MG), entre outras equipes de pouca expressão. E sua saúde também começou a definhar em decorrência dos abusos. Veja a foto acima: é de 1973, quando Martim chegou a Maceió para treinar o CRB. Tinha apenas 45 anos na ocasião, mas já estava precocemente envelhecido.

Foi no CRB que viveu um dos casos mais polêmicos e tristes de sua carreira: já acometido de problemas hepáticos e diabético, freqüentava assiduamente os bares e botequins de Maceió, contrariando as ordens médicas, que o proibiam expressamente de beber. Em uma dessas jornadas, encontrou em um bar com um conselheiro do CSA e um dirigente do São Domingos. Após muita conversa, regada a muita bebida, Martim acabou sendo conduzido à concentração do São Domingos, para assinar contrato com o clube.

A resposta do CRB foi rápida: o demitiu por justa causa e acusou, em nota oficial, a direção do São Domingos de embriagar o treinador propositalmente para "raptá-lo"; na mesma nota, "lavava as mãos" sobre o destino de Martim. A história acabou de forma triste para o técnico: foi demitido pelo São Domingos apenas dois dias após ser contratado.

Nos anos seguintes, Martim seguiu um rosário de peregrinação por equipes pequenas e de idas e vindas a hospitais e centros de reabilitação. Foi abandonado pela mulher, que levou os três filhos do casal para Juiz de Fora. E sua saúde estava cada vez mais frágil.

Em 1979, parecia que iria renascer. Aparentemente curado do vício, foi campeão metropolitano com o Gama, o primeiro título conquistado pela equipe alviverde em sua história. Mas foi apenas o epílogo de sua carreira. Voltou a beber, foi dispensado pela equipe candanga e retornou a Belo Horizonte, esperando em vão por algum novo convite para voltar a exercer sua profissão e eterna paixão.

Foi finalmente vencido pelo vício em 23 de junho de 1982, aos 54 anos, pobre, sozinho, esquecido pela mídia e cercado de poucos amigos fiéis. Não mais que trinta pessoas compareceram a seu sepultamento no cemitério do Bonfim. Ao mesmo tempo, e talvez numa última homenagem instintiva, a fantástica seleção brasileira treinada por Telê Santana dava mais um de seus shows na Copa do Mundo da Espanha, goleando a Nova Zelândia por 4 x 0.

Publicado originalmente no fórum Futebol News em julho de 2005

Foto: Museu dos Esportes

4 comentários:

Anônimo disse...

ELE FOI UM GÊNIO COMO TÉCNICO DE FUTEBOL E HOJE A SELEÇÃO BRASILEIRA CARECE DE UM MARTIM FRANCISCO.É ISSO, RONALD

Anônimo disse...

Bom artigo, mas Martim Francisco nunca comandou Vitória de Setúbal ou Porto.

Anônimo disse...

Martim foi um gênio do futebol. Talvez, o maior treinador que o mundo conheceu, sem nenhum favor, sem nenhum exagero. Frequentemente dirigiu equipes de elencos limitados e as fez competitivas. (Bem mais fácil é dirigir um grupo com Pelé, Cerezzo, Maradona, Messi...) Original e criativo, Martim era diferente daqueles inventores de araque de mancas invenções que esquecem o jogador e só dão certo no papel. Nas entrevistas percebia-se um homem incomum de inteligência rara e triste. Pouco antes de morrer, Martim dizia que havia descoberto algo novo e precisava de jogadores capazes de por sua criação em prática.
Não teve tempo, a bebida e a morte o levaram.

Ivson disse...

Até hoje, lembro de matéria na Placar, lá pelo fim dos anos 70, na qual ele dizia isso e também que o futebol ze pareceria com o basquete em 30 anos e o link abaixo mostra que ele errou por apenas 10 anos. Na mesma matéria, Parreira,Zagalo e Rubens Minelli afirmavam o mesmo: era o maior treinador que eles já tinham conhecido.
https://esportes.yahoo.com/noticias/usando-conceitos-basquete-inglaterra-tem-bola-parada-efetiva-na-copa-112930807.html